quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Encontro
Posted by Revista Presença Lusitana | quinta-feira, 30 de setembro de 2010 | Category:
ESPAÇO SARAMAGUIANO
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A primeira gota caiu diante de mim, poucos segundos depois a chuva começou Fui para um prédio onde podia ficar até a chuva terminar, as gotas tinham molhado o meu rosto mas na verdade também havia lágrimas saíndo dos meus olhos O que te acontece, disse-me um idoso que nem conhecia, por que estás a chorar? Eu fiquei surpreso porque segundo eu os idosos não vêem bem e olhei para ele, nada, na verdade nada Mas então por que estás assim? Sorri e disse-lhe, pois sinto que o mundo está a cair e nós os humanos não estamos a fazer coisa nenhuma, agora penso que ninguém se importa por isso Mas tu estás a te preocupar, disse Sim, sim e por isso estou triste Eu compreendo e creio que tens razão mas preocupando-te não consegues nada Vamos lá tomar algo quente eu moro perto daqui (a chuva acabou nesse instante) Mas eu não conheço o senhor Mas eu não vou fazer nada sou um velho caquéctico Senti confiança nele e então fomos para a sua casa ao entrar havia un jardim mais ou menos grande com uma árvore, uma oliveira velha, a casa era muito esquisita com um cheiro que me fazia sentir cómodo, era tradicional, quase familiar, havia uma mulher, também idosa mesmo que menos Chama-se Pilar é minha mulher Eu vou preparar algo para vocês, disse amavelmente a senhora e foi para outra sala Vem cá penso que a biblioteca é um óptimo lugar para o cafezinho ser bebido Entrei, havia em uma secretária duas fotos, uma junto da outra Quem são? Perguntei Eles são os meus pais José de Sousa e Maria da Piedade e ali estávamos em Azinhaga o povo onde eu nasci que fica perto de Lisboa, Portugal e nessa outra somos Violante minha filha e eu É muito bonita, disse-lhe, continuei a olhar e vi grandes prateleiras cheias de livros Gostas de ler, perguntou Sim, mesmo adoro Então vou te emprestar um depois mas primeiro diz-me por causa de quem ou que é que estás triste Mas já lhe disse, por causa dos humanos e do mundo, eu sinto que não creio em nada Tens de saber algo gajo, disse com uma voz muito firme Nossa maior tragédia é não sabermos o que fazer com a vida, a gente tem um presente muito valioso que desperdiça e do qual não toma conta até que é tarde, a vida vale muito e tu és novo ainda tens muitas coisas por viveres Nesse momento a senhora entrou com o café e bolachas para nós Aqui têm os senhores (e sorriu docemente) O senhor nunca sentiu isto que eu sinto? (perguntei) Sim, muitas vezes mas sempre tive uma esperança que ainda não morre, conheci muitos lugares; a Argentina, a Espanha, fui perseguido por ter ideias diferentes daquelas de um senhor ruim que se chamava Salazar e que tinha uma dictadura no meu país, eu mesmo participei numa revolução, a Revolução dos Cravos com a qual a gente conseguiu a democracia em Portugal Eu não acreditava nada, pensava que como a maior parte dos idosos aquele bom homem estava a inventar histórias para eu ficar espantado, continuei a olhar a biblioteca toda em outra secretária havia três livros peguei no primeiro dizia na capa “as pequenas memórias” Isto é um diário, não é? perguntei É mais do que isso é a minha vida, as minhas lembranças, as minhas viagens, escrevi-o para quando tiver saudades do meu passado Que boa ideia, se calhar algum dia eu possa escrever as minhas também, respondi, o segundo livro era mais grosso do que o primeiro Com esse ganhei um prémio, um muito importante de facto Ou seja que é escritor? Algumas pessoas chamam-me assim, mas eu não uso esse adjectivo, sou jornalista e às vezes escrevo o que vem à minha cabeça Coloquei o livro no seu lugar e quando ia pegar no terceiro ele disse Esse ainda não o acabei mas com certeza posso te dizer que algumas pessoas não vão gostar dele e outras ficarão zangadas mas já estou acostumado E como é que se chama? já tem nome? Sim, chamar-se-á caim Como aquele da Bíblia? (eu disse) Sim como aquele (respondeu com vontade de rir) Girei o corpo e na parede vi um muro onde havia muitas fotos dele com pessoas que segundo eu lhe entregavam prémios e também havia um mostruário com alguns prémios, todos eles brilhavam como o ouro E todos esses prémios? A gente pensou que eu merecia e deram-mos (naquele momento percebi que era um homem modesto e não queria presumir os seus sucessos) o meu telefone tocou, era minha mãe que estava mesmo preocupada por mim Eu tenho de ir embora, senhor Está bem menino, toma conta de ti e deu-me uma folha que tinha escrito algo Muito obrigado, senhor e dirigi-me para a saída, li a folha dizia somente “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Livro dos conselhos No início não percebi o que queria dizer com isso, e depois pensei que se calhar era um conselho para o meu problema, quando caminhava pelo jardim antes de sair da casa olhei para atrás e ele estava ali e perguntei-me como é que se chama? gritei: qual é o seu nome, senhor? Chamo-me José, José Saramago, respondeu.
(Uma pequena homenagem ao maior escritor português: José Saramago).
(Uma pequena homenagem ao maior escritor português: José Saramago).
O maior escritor da língua de Camões nasceu na aldeia portuguesa Azinhaga perto de Lisboa em 16 de Novembro de 1922, foi filho de camponeses pobres o qual influenciou profundamente sua ideologia de esquerda, casou por primeira vez com Ilda Reis com quem teve uma filha, Violante, pertenceu ao Partido Comunista Português, sofreu censura e perseguição durante os anos da ditadura de Salazar, participou na Revolução dos Cravos com a qual se levou Portugal à democracia, foi jornalista, casou uma segunda vez com Pilar del Río, estava apaixonado pela cultura principalmente pela portuguesa e a espanhola as quais dividiam o seu coração, escreveu obras biográficas, poesias, relatos, romances, crónicas, um guia turístico e teatro com as quais ganhou importantes prémios entre os que destacam o Prémio Camões e o Prémio Nobel de Literatura em 1998, a sua obra mais conhecida é O Ensaio Sobre a Cegueira, morreu em 18 de Junho de 2010 na ilha espanhola de Lanzarote.
Enrique Tristán.
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