terça-feira, 9 de novembro de 2010

Monólogo desde o hospital

Posted by Revista Presença Lusitana | terça-feira, 9 de novembro de 2010 | Category: |

“Homem, não tenhas medo, a escuridão em que estás metido aqui não é maior do que a que existe dentro do teu corpo, são duas escuridões separadas por uma pele, aposto que nunca tinhas pensado nisto, transpostas todo o tempo de um lado para outro uma escuridão (...), meu caro, tens de aprender a viver com a escuridão de fora como aprendeste a viver com a escuridão de dentro”
José Saramago

Meu deus! Este mundo da injustiça globalizada está por me converter em mais um doido. Ver os dias todos na televisão a crise pela qual está a passar a humanidade faz-me sentir uma...dor? Uma preocupação? Faz-me sentir um coiso esquisito no meu peito, o qual é difícil de descrever. As tantas injustiças cometidas neste mundo não me permitem ser eu, eu o homem, eu a suposta grande maravilha da terra, eu o único ser com raciocínio... se calhar as injustiças realmente nascem porque somos animais, só por isso, simples animais.

Os sentimentos que nos fazem ser humanos estão a perder-se. As guerras, a violência nos têm tão acostumados a ver o sofrimento da gente (esperem, podemos realmente vê-lo? ou somos simples cegos?). O sofrimento é natural na televisão, na internet... na vida diária. Somos Caim, irmão com inveja e ódio, israelita contra palestino, pátrias contra pátrias, ideias estúpidas contra ideias estúpidas...por que nós não somos homens, mulheres, meninos à procura de uma vida melhor, só isso, uma simples vida melhor.

Os dias todos eu (não aquele que assina, EU) acordava com uma esperança nova. Tentava de fazer meus dias simples-complicados, tentava de fazer algo pela humanidade: escrever, falar, gritar, ler, tudo o que estivesse na minha mão para ser um melhor homem, não o súper-homem, senão o verdadeiro homem, aquele capaz de transformar o seu mundo e formar o seu destino. Ser a maior flor do mundo, a flor mais bela do mundo para ter a oportunidade de levar a grandeza a tempos futuros e não consumir o tempo das outras gerações.

Não sei o que aconteça depois, poderá salvar-se a humanidade?...Eu poder-me-ei salvar? talvez não, não sei já nada nesta cama. Os hospitais põem-me melancólico, triste. A minha ex-mulher jurou vir visitar-me, mas até agora não a vi. Minha filha...minha cara filha, ela está em Lisboa com o seu namorado, não sabe o que se passa comigo e EU, eu estou à espera de uma enfermeira porque as dores de peito não me deixam dormir. Não gosto de ver a televisão nesta situação, prefiro ler romances ou contos, sempre são mais reais do que a mesma vida e os únicos livros que tenho agora são de D. José Saramago.

Soube que Saramago morreu há pouco tempo. Lembro que a minha filha telefonou-me chorando pela morte do seu escritor preferido, eu não o achei importante, pensei que estava exagerando, mas agora, quando estou a ler os seus romances apercebo-me da importância deste homem. D. José Saramago foi um dos poucos seres humanos que podiam olhar o mundo uma vez que tinha reparado no que nele acontecia. As suas letras mostravam o mundo, os grandes vazios que temos de encher cada um de nós. E agora, eu posso encher o quê?, a doença, a tristeza, a nostalgia não servem, além de saber que “enquanto houver vida, haverá esperança”.

Tenho pouco tempo de vida, disseram-me os médicos. Um mês, no máximo dois. Não tenho medo de morrer, de ir à outra ilha, porque aceitei meu passo fugaz nesta terra: “nascer, viver e morrer, e acabou”. E agora só espero... só espero o momento do meu último suspiro enquanto leio D. José. Graças àquela personagem eu sinto-me melhor com minha vida, onde fiz o que tinha de fazer.


Gustavo Y.

Currently have 0 comentários:


Leave a Reply