quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O inferno do avô

Posted by Revista Presença Lusitana | quinta-feira, 30 de setembro de 2010 | Category: |

Vejo-o. Está aí, sentado, com o olhar extraviado e a inteligência nula. Encostado na sua velha cadeira, se calhar à espera do momento trágico que todos chamam morte. Eu na frente dele, não consigo deixar de vê-lo; há algo esquisito nos seus olhos que...

A minha mãe diz que o avô ficará assim para sempre. Que está doente e, mesmo que já não fala nem come só, nem sorri como antes, havemos de tomar conta dele. Sinto muita saudade porque o avozinho gostava de escrever histórias maravilhosas para mim. Cada noite, antes de eu dormir, ele ia ao meu quarto com dezenas de folhas cheias de contos inigualáveis e criaturas mágicas. Tinha uma imaginação enorme.

Falava sobre sereias apaixonadas por homens asados, sobre exércitos de caveiras lutando pelo domínio de um cemitério, sobre coloridos gatos conspiradores tentando acabar com os cães da cidade. Então, a casa toda começava a ser habitada por tantas e tão raras personagens. A ficção adquiria vida.

Agora já não. Agora é como um vegetal (chamam-no assim os adultos) e a nossa vida aborrecida como nunca foi. Mas o avô ainda vive, e tenho a certeza de que os infinitos seres que moravam na sua cabeça, também. Por isso não quero nem vou deixar de procurar a resposta nos seus olhos, porque são estes as janelas para eu conhecer o que acontece no seu interior; na sua alma.

Vejo-os, vejo-os mais de perto cada vez para ficar perdido naquele labirinto que é a mente.

Entro e logro ver tudo com nitidez. As paisagens que o avô descrevia estão aqui. Mas não há vidas, ninguém. Caminho só para me encontrar, cada detalhe com que adornava os seus cenários, feitos realidade. Estou dentro dele, no centro do seu maluco pensamento, porém, ao redor somente existe a solidão.

Depois de um instante, escuto sons. Um barulho pequeno detrás de uma árvore gigante. Procuro um esconderijo e observo.

É incrível! Todos e cada um dos entes, animais e monstruosidades nascidos nos contos do avô estão aqui. Fazem um círculo e no centro está alguém ajoelhado e maltratado: É pena. É ele. É o avô.

Alguns batem nele com ódio assassino. Estão a discutir sobre não sei que coisa. Falam e falam mas não ouço nada.

As criações trairam o seu criador. Levaram-no ao fundo dele mesmo para um ajuste de contas, qual deus que sofre castigo da mão da sua própria invenção, qual pai que é submetido pelos filhos.

Saio correndo antes de a imaginação ser o lugar da minha morte. Lá de fora, no mundo real, compreendo o inferno do avô. Está a viver acorrentado no lugar mais perigoso de todos: a loucura humana e individual.

Desejo ajudá-lo. Preciso de ajudá-lo. Estou raivoso, mas nunca poderei destruir essas quimeras traiçoeiras: o avô terá de morrer junto delas.
 
Que seja assim, então.
 
Jorge Martínez Palafox.

Currently have 2 comentários:

  1. E... o que posso eu dizer? É esse o grande perigo de criar: os infernos pessoais.
    Todos os escritores (é, estou nos chamando de escritores, que orgulho) temos um, né?
    É por isso não eu não gosto de escrever contos, para evitar criar essas quimeras horríveis que um dia quererão me devorar, eu sei; ah, e também porque não sei escrever tão bem como você.

  2. Gostei muito do artigo e do blog também! Eu voltarei!


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